EUA reclassificam maconha e facilitam pesquisas médicas: cannabis medicinal funciona? O que mostram os dados de revisão científica

Published 1 hour ago
Source: g1.globo.com
EUA reclassificam maconha e facilitam pesquisas médicas: cannabis medicinal funciona? O que mostram os dados de revisão científica

Anvisa libera Embrapa a realizar pesquisas com cannabis O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou nesta quinta-feira (18) uma ordem que recomenda o afrouxamento das regras federais sobre a maconha. A mudança pode levar a maconha a uma categoria considerada menos perigosa, ao lado de analgésicos comuns. Atualmente, a maconha tem a mesma classificação federal que heroína e ecstasy, consideradas drogas de alto potencial de abuso e sem uso médico aceito. Autoridades afirmam que o objetivo é ampliar pesquisas médicas sobre a droga e seus derivados, para avaliar riscos e possíveis usos terapêuticos. O uso da cannabis com finalidade medicinal se espalhou pelo mundo nos últimos anos, impulsionado por mudanças regulatórias, relatos de pacientes e a promessa de uma alternativa “natural” para tratar dor, ansiedade, insônia e uma longa lista de sintomas. No Brasil, essa pressão por evidência científica ganhou um novo capítulo em novembro de 2025, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) a cultivar e pesquisar a cannabis em território nacional, em uma decisão voltada exclusivamente para fins científicos e sujeita a controles estritos. Mas, quando o debate sai do campo da experiência individual e entra no da medicina baseada em evidências, o cenário ainda mostra limitações claras. É o que revela uma ampla revisão científica publicada no Journal of the American Medical Association (JAMA), uma das revistas médicas mais influentes do mundo. O artigo analisou 124 estudos publicados entre 2010 e 2025 — incluindo ensaios clínicos, revisões sistemáticas, meta-análises e diretrizes — e traça um retrato atualizado do que a ciência sabe, de fato, sobre o uso terapêutico da cannabis e de seus derivados. A conclusão central é direta: há evidência científica consistente para indicações específicas, geralmente envolvendo canabinoides farmacêuticos padronizados. Para a maioria dos usos difundidos na prática clínica e no imaginário popular, os dados ainda são insuficientes ou inconsistentes, apontando a necessidade de continuidade das pesquisas sobre o tema. Maconha medicinal: até julho do ano passado, cerca de 672 mil pacientes usaram produtos à base de Cannabis no Brasil Pixabay Poucas indicações, bem delimitadas Para o psiquiatra Vinicius Barbosa, coordenador do Núcleo de Cannabis Medicinal do Hospital Sírio-Libanês e membro do Conselho Diretor da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia, o principal mérito do estudo é recolocar o tema no terreno da medicina baseada em evidências. Segundo ele, a revisão não muda de forma concreta as recomendações clínicas, mas organiza criticamente o que já se sabia e ajuda a separar dados robustos de expectativas exageradas. A mensagem, afirma, é de cautela: nem entusiasmo acrítico nem demonização. A revisão mostra que os benefícios mais bem estabelecidos aparecem em contextos muito específicos. Entre eles estão algumas epilepsias pediátricas raras e refratárias — como as síndromes de Dravet e de Lennox-Gastaut —, nas quais o canabidiol purificado demonstrou redução significativa da frequência de crises. Também há evidência para o uso de canabinoides sintéticos no controle de náuseas e vômitos induzidos por quimioterapia e para estimular o apetite em pacientes com HIV/AIDS, ainda que os efeitos sejam considerados modestos. “Esses são cenários em que há produto padronizado, dose conhecida, estudos clínicos bem conduzidos e aprovação regulatória”, explica o neurocirurgião Helder Picarelli, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pela Universidade Federal de São Paulo. Fora dessas situações, diz ele, a maior parte das indicações se apoia em estudos observacionais, séries de casos ou ensaios pequenos, com limitações metodológicas importantes. Barbosa chama atenção para o fato de que, mesmo quando o uso é autorizado, isso não equivale a comprovação ampla de eficácia. Grande parte do que se vê hoje na prática ainda é uso off-label, em condições para as quais faltam ensaios clínicos robustos, com desfechos claros, acompanhamento prolongado e avaliação cuidadosa de risco-benefício. Jornal Nacional Cannabis medicinal não é sinônimo de medicamento Um dos pontos centrais do artigo é a distinção entre canabinoides de grau farmacêutico e produtos vendidos como “cannabis medicinal”. Embora frequentemente tratados como equivalentes no debate público, eles não são a mesma coisa do ponto de vista médico. Medicamentos como o canabidiol purificado, o dronabinol e a nabilona passam por controle rigoroso de qualidade, têm composição definida, dose previsível e foram testados em ensaios clínicos. Já muitos produtos comercializados como cannabis medicinal — óleos, extratos e flores — podem apresentar grande variabilidade na concentração de tetraidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD), além de falhas de padronização e risco de contaminantes. “Do ponto de vista clínico, são coisas completamente diferentes, embora socialmente confundidas”, explica a médica Juliana Bogado, especialista em canabidiol e diretora-geral da EndoPure Academy. Resultados obtidos com canabinoides farmacêuticos, ela ressalta, não podem ser automaticamente extrapolados para produtos sem controle rigoroso de dose, pureza e estabilidade. Picarelli acrescenta que, em muitos países, esses produtos têm potência semelhante à da cannabis recreativa, o que amplia os riscos e cria uma falsa sensação de segurança associada ao rótulo “medicinal”. Segundo a ONU, mais de 200 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos fizeram o uso da cannabis em 2020. Freepik Dor, ansiedade e insônia: popularidade sem evidência robusta Apesar da falta de evidência consistente, dor crônica, insônia e ansiedade estão entre os principais motivos que levam pacientes a usar cannabis medicinal. O estudo aponta que, nesses casos, os trabalhos disponíveis são pequenos, de curta duração e com desfechos subjetivos, o que dificulta conclusões firmes. Para Barbosa, esse é um dos pontos mais delicados do debate. O relato do paciente é legítimo, mas não substitui a evidência científica. Em sintomas como dor, sono e ansiedade, o efeito placebo é elevado e a resposta individual pode ser confundida com benefício terapêutico sustentado, mesmo sem impacto claro sobre a condição de base. A revisão do JAMA destaca que a ausência de evidência robusta não equivale à prova de ineficácia, mas indica que ainda faltam dados confiáveis para recomendações amplas e seguras. Riscos reais, especialmente com THC elevado Se os benefícios são limitados, os riscos associados ao uso da cannabis — sobretudo de produtos com alto teor de THC — estão mais bem documentados. A revisão associa o consumo de cannabis de alta potência a maior risco de sintomas psicóticos, como: ansiedade, dependência, eventos cardiovasculares, como infarto e acidente vascular cerebral (AVC), especialmente em usuários frequentes. Estima-se que cerca de 29% das pessoas que usam cannabis com finalidade medicinal preencham critérios para transtorno por uso de cannabis. “O risco costuma ser subestimado quando se generaliza o termo ‘cannabis’”, afirma Bogado. Produtos ricos em THC, principalmente por via inalatória, não podem ser comparados a formulações orais, padronizadas e com menor potencial de efeitos adversos. Um campo em amadurecimento Para os especialistas, o momento atual é de revisão crítica e amadurecimento científico. A cannabis não se encaixa no modelo clássico de medicamento: é uma planta com múltiplos compostos ativos, diferentes vias de uso e efeitos que variam conforme dose, composição e perfil do paciente. “O entusiasmo inicial está dando lugar a uma abordagem mais precisa e responsável”, resume Vinicius Barbosa. Isso não significa rejeitar os canabinoides, mas reconhecê-los dentro de limites claros, com indicação específica, monitoramento clínico e avaliação rigorosa de risco-benefício.

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