
Fé, cultura ou rejeição: por que há quem não celebre o Natal Para grande parte dos brasileiros, o fim de dezembro é sinônimo de mesa farta, reencontros familiares e troca de presentes. Mas há quem passe pelo dia 24 como qualquer outra data do calendário. As razões são diversas: religião, culturas distintas ou até experiências pessoais marcadas por conflitos e rejeição na família. No caso da médica Flávia Raquel Teodoro Rotiroti, da Congregação Cristã no Brasil, e da babá Elaine Cristina dos Santos Barboza, Testemunha de Jeová, o principal motivo para a falta de clima natalino é religioso. “Algumas denominações evangélicas não comemoram o Natal. Não existe em nenhum lugar da Bíblia dizendo que o dia 25 de dezembro é o nascimento de Jesus. Historicamente também não seria essa data. É uma celebração comercial, cheia de questões simbólicas, como o Papai Noel”, disse Flávia. A médica nunca comemorou o Natal, porque desde criança sua família já era evangélica. Já Elaine não comemora há 28 anos, desde que começou os estudos bíblicos. “Antes, eu sempre comemorava com os familiares. Quando comecei a estudar a Bíblia, aprendi que essa festa não tem a ver com o nascimento de Jesus Cristo. Ele nos mandou comemorar sua morte, não seu nascimento”, disse a babá. O sociólogo Clemir Fernandes, diretor adjunto do Instituto de Estudos da Religião (Iser), explica que o Natal nem sempre ocupou o lugar central que tem hoje no cristianismo. Enquanto a Páscoa, ligada à Paixão de Cristo, é celebrada desde o primeiro século, o Natal só tem registros históricos a partir do quarto século, segundo ele. Como qualquer tradição, a celebração foi se desenvolvendo e ganhou força no longo período medieval. Portanto, não é estranho que alguns grupos cristãos não celebrem oficialmente o Natal, o que não significa que não façam festejos em família", afirma Fernandes. Famílias reinventam o Natal para as crianças Para as famílias que não celebram datas tradicionais, o desafio costuma ser explicar essa escolha às crianças. Elaine conta que seus filhos, hoje adultos, cresceram sem sentir falta do Natal, porque já cresceram dentro da religião. Já a neta, costuma celebrar com os outros avós. “E a gente celebra muito no decorrer do ano. Nos reunimos para fazer brincadeiras, festas, alugamos salão, chácaras. E todas as crianças acabam se divertindo muito. Então, não tem nem como sentir falta disso”, comentou Elaine. Elaine com o filho mais velho, Rafael. Arquivo pessoal Flavia também não isola os filhos, que se encantam com as luzes e árvores espalhadas pela cidade e na casa de vizinhos. “Se eles perguntarem, eu explico que nossa religião não comemora o Natal. Mas não vejo problema nenhum em fazer uma decoração. Eu senti falta disso quando era criança. Já os presentes de fim de ano estão comprados. Se eles começarem a questionar mais, a gente decide. O importante é explicar", conta a mãe. Flavia não isola os filhos, que se encantam com as luzes e árvores de Natal. Arquivo pessoal Para Elaine, o mais divertido é dar presentes sem ter uma data comercial determinada. “É tão gostoso ganhar um presente quando você não espera. A surpresa é mais divertida”, afirmou. ‘Não gosto da data’ Nem sempre o desinteresse pelo Natal passa pela religião. A enfermeira Nathalia Bastos diz que simplesmente não gosta da data. “Não vejo sinceridade em comemorar o nascimento de uma pessoa que foi crucificada e continua sendo crucificada todos os dias”, desabafa. Para Nathalia, que lembra de comentários cruéis ouvidos de familiares, o Natal expõe algumas hipocrisias. “Muitas vezes eu era a crucificada. Poderiam começar vivendo o que o aniversariante ensinou: amar o próximo, sem julgamentos”, afirmou. O sociólogo Fernandes observa que, cada vez mais, o Natal tem se afastado de seu sentido religioso. “Mesmo entre cristãos, virou uma celebração de comida, bebida, presentes e encontros familiares, com alegrias e também conflitos”, disse. Çuriçawara: para povos indígenas, Natal é o dia da felicidade Entre povos indígenas, o fim do ano também pode ganhar outros significados. Em uma publicação nas redes sociais, o professor e escritor indígena Yaguarê Yamã explica que, em algumas tradições, existe o Çuriçawara, que significa “o dia da felicidade”, na língua geral. Segundo ele, trata-se de uma data ancestral que celebra alegria, amizade e comunhão entre humanos e espíritos da floresta. “Os velhos dizem que não se sabe quando tudo começou. Só se sabe que os espíritos da felicidade se unem para festejar com os humanos”, escreveu no Instagram. Segundo o mito indígena, não há apenas um bom velhinho, mas dois: a vovó Hary e seu esposo Karimã. “Salve o dia da felicidade, o Çuriçawara!”, disse Yamã. Culturas orientais não têm tradição de Natal O Natal também não ocupa espaço central fora do cristianismo. Em países islâmicos como Indonésia, Paquistão, Turquia e Egito, Jesus é reconhecido como profeta, mas não como figura divina. Os muçulmanos celebram principalmente o Eid al-Fitr, após o Ramadã, e o Eid al-Adha, ligado à história do profeta Abraão. No budismo, predominante em países como China, Japão, Tailândia e Vietnã, Jesus é visto como um ser de grande sabedoria, um bodhisattva, mas o nascimento dele não é celebrado. A principal data é o Vesak, que marca nascimento, iluminação e morte de Buda. Já para os judeus, Jesus existiu, mas não é o Messias. A principal festa do período é o Hanukah, a Festa das Luzes, que relembra a resistência religiosa e cultural do povo judeu. No hinduísmo, presente sobretudo na Índia, o calendário é marcado por festas ligadas a diferentes divindades e energias, como Diwali, Holi e Krishna Janmashtami. O Natal não faz parte dessa tradição, assim como no taoismo e no xintoísmo, em que o dia 25 de dezembro tem, no máximo, caráter comercial. Para Clemir Fernandes, esse panorama mostra que, embora o cristianismo tenha grande peso cultural, ele está longe de ser universal. “Existem muitas tradições religiosas com calendários próprios. Para algumas delas, o Natal é totalmente estranho ou desconhecido”, conclui.
